sábado, 16 de junho de 2012

A desConferência de Alfredo Wagner no Cultura&Sustentabilidade do RIO+20

OS SABERES TRADICIONAIS E A CULTURA DA SUSTENTABILIDADE


por Alfredo Wagner




Publicado em maio 16, 2012  por Cultura & Sustentabilidade RIO+20

15 de Junho, de 9h30 às 12h30
 Local: Galpão da Cidadania



1 – Estamos assistindo nestas duas primeiras décadas do século XXI a uma intensa mobilização em torno da proteção da criatividade intelectual, que tem uma de suas manifestações mais expressivas nas lutas pelo reconhecimento dos saberes tradicionais. As produções intelectuais baseadas na tradição ganham uma nova significação com a globalização. Em torno delas tem-se mobilizações, buscando um reconhecimento internacional da igualdade jurídica da expressão intelectual dos homens.


2 – Uma noção ampliada dos saberes tradicionais compreende um conjunto de práticas e de saberes cotidianos, agrícola e ecológico, ligados à biodiversidade e às expressões folclóricas sob a forma de música, dança, cantos, artesanatos, desenhos, pinturas corporais, elementos de linguagem – com os nomes, as indicações geográficas e os símbolos das sequencias cerimoniais. Os saberes tradicionais não são estáticos, são dinâmicos e se transformam sucessivamente. Não são definidos por sua antiguidade, mas pela maneira como são adquiridos e utilizados. Considerando que são relacionais, não é possível, portanto, desenvolver uma única definição, exclusiva e fixa destes saberes como apregoam as interpretações evolucionistas.

3 – O respeito à diversidade cultural, o reconhecimento efetivo e a consideração de modos de vida e de pensar distintos são o pressuposto básico para a afirmação dos saberes tradicionais. Ao tratar desses saberes, não falamos exclusivamente do exemplo corriqueiro do conhecimento de povos indígenas sobre plantas medicinais, que interessam às indústrias farmacêuticas e àquelas de cosméticos. Consideramos relevante falarmos também dos saberes dos demais povos e comunidades tradicionais, como os quilombolas, as quebradeiras de côco babaçu, as comunidades de faxinais e de fundos de pasto, os ribeirinhos, os seringueiros, os castanheiros, os pescadores artesanais e os piaçabeiros. Estamos nos referindo aos conhecimentos de quebradeiras de coco babaçu que, detentoras de um sistema de saberes renovados no cotidiano, localizam as melhores palmeiras, “catam” e quebram o coco babaçu e dele aproveitam tudo, segurando sua reprodução física e social. Reafirmando seus saberes tradicionais, mobilizam-se para manter os ecossistemas das quais sobrevivem e o modo de vida ali construído, lutam para continuar sendo quebradeiras de coco babaçu. Estamos falando dos saberes e práticas das mulheres faxinalenses, para quem cuidar da saúde com ervas medicinais é um ato intermediado pela divindade que provê o dom de curar. Estamos falando da diversidade das línguas nativas e dos dialetos, das ricas expressões da nossa cultura manifestada nos artesanatos, nas danças, na culinária e nos rituais. Falamos de saberes que são renovados no cotidiano das pessoas e das comunidades e que são afirmados em nome de uma identidade coletiva.

No Brasil, o Decreto n.3.551/2000 institui o registro do patrimônio cultural. Através dele foi instituído o livro dos saberes, onde são inscritos os “conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades”. As noções de “enraizado” e “cotidiano” sugerem esta tradicionalidade sem reduzi-la às práticas mecânicas de repetição.

Uma indagação corrente: tal instrumento de registro tem sido visto positivamente pelos povos e comunidades tradicionais?

4 – O processo social de aprendizagem e de compartilhamento destes saberes é singular e corresponde às especificidades de cada povo e comunidade tradicional, consistindo no próprio fundamento de sua tradicionalidade. As regras de transmissão mostram-se variáveis, requerendo uma acuidade extremada para a compreensão dos costumes locais e para sua normatização.

5 – Com a emergência das modernas biotecnologias, os saberes associados aos recursos genéticos emergem como dotados de um valor econômico, cientifico e comercial até então ignorado. Tal emergência ocorre simultaneamente à ênfase na cultura da sustentabilidade, apoiado na Convenção de Defesa da Biodiversidade, de 1992. A sustentabilidade de que tanto se fala passa a ser vista como muito atrelada ao aspecto econômico do uso do meio ambiente.

Os saberes tradicionais indicam uma possibilidade econômica, mesmo aqueles que não são associados à biodiversidade?

6 – A erradicação da pobreza foi declarada pela ONU como meta para este novo milênio (cf. Declaração do Milênio, 2000) e a Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de 2005, classifica a cultura como um elemento de combate à pobreza. Com esta Convenção, os Estados se comprometeram a fomentar as indústrias culturais.

A cultura, a partir destas Convenções, se transforma em mercadoria? E o patrimônio cultural é um conjunto de bens? Bens, sim, mas de natureza especial, como afirma a Convenção de 2005, uma vez que expressam valores e identidades.

7 – Os saberes tradicionais se exprimem de maneira tangível (ex.artesanatos) ou intangível (ex. rituais) e as atuais mobilizações em torno deles simbolizam uma oposição entre uma produção anônima industrial de bens e serviços para as sociedades multinacionais regido pela rentabilidade financeira, e uma economia comunitária que assegura a sua sustentabilidade. Esta autonomia no produzir e a garantia da reprodução dos recursos, que caracterizam a sustentabilidade, autorizam que se fale hoje numa autoconsciência cultural como fator básico das mobilizações.

8 – Os saberes dos povos e comunidades tradicionais possuem um caráter coletivo e a sua aquisição por parte de terceiros (indústrias e laboratórios), deve ocorrer, segundo as disposições legais, através das disposições que regem os contratos baseados na justa repartição dos benefícios resultantes de seu uso.

9 – Ao empreender um trabalho exploratório para melhor compreensão das questões ligadas à propriedade intelectual em relação aos recursos genéticos, aos saberes tradicionais e às expressões do folclore, a OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) tem colocado em pauta questões relativas a um consenso sobre os princípios e os objetivos da proteção dos saberes tradicionais. O instrumento da consulta, nos termos da Convenção 169 da OIT torna-se essencial para que possam ser explicitados os pontos de vista dos povos e comunidades tradicionais através sobretudo, dos movimentos sociais, sobre a natureza destes contratos, em cada situação específica, e seus efeitos sobre os recursos naturais e a própria vida comunitária.

Sobre o autor: Alfredo Wagner
Possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1978) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993). Atualmente é professor colaborador da Universidade do Estado do Amazonas-UEA, como professor e pesquisador do Centro de Estudos do Trópico Úmido-CESTU. Atuando principalmente nos seguintes temas: povos tradicionais,etnicidade, conflitos, movimentos sociais, processos de territorialização e cartografia social, Amazônia.


(Originalmente publicado em http://www.cultura.gov.br/riomais20/desconferencia/2012/05/16/os-saberes-tradicionais-e-a-cultura-da-sustentabilidade/)

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